quinta-feira, 16 de abril de 2015

Ancestralidade: Quais partes de nós não são nossas?


Marcelino da Silva Brito




Apesar da insistência do ser humano em acreditar na qualidade da sua percepção da realidade, em poder julgar essa realidade de acordo com seus paradigmas sem grandes interferências, o que se sabe com relação à percepção, ao juízo, e ao julgamento do objeto percebido, é que somos “vítimas” de interferências de várias origens, dotadas de potências diferentes, compreendidas umas, desconsideradas e incompreendidas outras. A interferência percebida nos aparece quase sempre como uma fraqueza, como inaptidão, ou desconhecimento, então tentamos ignorá-la ou a negamos. Pior e muito mais perturbador que olhar, ouvir, sentir, sem perceber ou julgar claramente por falha dos mecanismos de percepção e julgamento, é cogitar que esses mecanismos podem perceber parcialmente à revelia da nossa vontade expressa, porque foram programados com diretrizes influentes, mas invisíveis, trazidas como bagagem da nossa ancestralidade.
Poucos não compartilham o prazer pelo conceito de liberdade expressa na ideia de livre-arbítrio. Todos gostamos de acreditar nas nossas capacidades, nos iludimos com a decisão e, seja qual for, damos à ela todo o valor de uma filha genuína, uma obra solitária e jamais corrompida das nossas vontades. E se de repente surge alguém e sem lhe dar tempo para pensar, já que nem acredita na importância disso, só quer ser evidente, e lhe afirma: boa parte do que você é não é seu, boa parte do que você usa para julgar o mundo e você mesmo não é seu! Perder a capacidade de deduzir, ser afastado do privilégio de decidir, esses são pesadelos para qualquer um que nutre afeto pelo que considera evidência universal da sua liberdade. Mas e se consideramos que não é uma perda e sim uma mudança de foco, ou o mesmo foco que teríamos, só que a bagagem que o constitui não é somente o que somos, mas o que fomos como história e raça? Ai está a chave para considerar a importância do inconsciente coletivo e dos arquétipos, e a partir desse momento eles devem ser entendidos como inevitáveis constituintes do que somos.
Percepção, julgamento, pensamentos, memória, sentimentos, intuição, juízo, todos são conceitos constitutivos do que nos define na nossa completude, todos estão subordinados às energias e cargas que carregamos, porque acima de tudo somos resultado de diferentes esforços, só que agora sabemos que não são todos nossos. O ser do resultado, sempre à procura, invariavelmente vai se deparar com o fato de que nele residem seus ancestrais com as cargas de seus erros e acertos. Carl Gutav Jung foi quem nomeou essas pressões ancestrais em seu todo, chamando-as inconsciente coletivo, e as suas partes constitutivas chamou arquétipos. Possibilitou-nos compreender de forma mais global o que somos, mesmo que essa compreensão também se baseie no item estudado através do próprio item estudado que julga, mesmo contaminando sistematicamente o julgamento que um dia foi considerado livre e parcial em sua base e em seus resultados. A liberdade reside em ser em parte algo que não considerávamos ser? A liberdade reside em vivermos com base nos vícios e virtudes dos nossos ancestrais? A liberdade reside no fato de não conhecermos? Ou no fato de podermos procurar?
Como dito anteriormente, somos resultado, mas somos busca também e devemos viver conscientes de que enquanto buscamos, muito do que achamos desejar vem de outro tempo, de outros indivíduos; desejos que não podem ser considerados alheios, porque não nos alienaremos do que nos constitui, já que somos nós em primeiro lugar, mas também eles, os seres da nossa ancestralidade, em tudo que fazemos. Resta-nos a responsabilidade da carga e o privilégio de constituirmos parcialmente o que seremos como humanidade.



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