Marcelino da Silva Brito
Apesar da insistência do ser humano em acreditar
na qualidade da sua percepção da realidade, em poder julgar essa realidade de
acordo com seus paradigmas sem grandes interferências, o que se sabe com
relação à percepção, ao juízo, e ao julgamento do objeto percebido, é que somos
“vítimas” de interferências de várias origens, dotadas de potências diferentes,
compreendidas umas, desconsideradas e incompreendidas outras. A interferência
percebida nos aparece quase sempre como uma fraqueza, como inaptidão, ou
desconhecimento, então tentamos ignorá-la ou a negamos. Pior e muito mais
perturbador que olhar, ouvir, sentir, sem perceber ou julgar claramente por
falha dos mecanismos de percepção e julgamento, é cogitar que esses mecanismos
podem perceber parcialmente à revelia da nossa vontade expressa, porque foram
programados com diretrizes influentes, mas invisíveis, trazidas como bagagem da
nossa ancestralidade.
Poucos não compartilham o prazer pelo conceito
de liberdade expressa na ideia de livre-arbítrio. Todos gostamos de acreditar
nas nossas capacidades, nos iludimos com a decisão e, seja qual for, damos à
ela todo o valor de uma filha genuína, uma obra solitária e jamais corrompida
das nossas vontades. E se de repente surge alguém e sem lhe dar tempo para
pensar, já que nem acredita na importância disso, só quer ser evidente, e lhe
afirma: boa parte do que você é não é seu, boa parte do que você usa para
julgar o mundo e você mesmo não é seu! Perder a capacidade de deduzir, ser
afastado do privilégio de decidir, esses são pesadelos para qualquer um que
nutre afeto pelo que considera evidência universal da sua liberdade. Mas e se
consideramos que não é uma perda e sim uma mudança de foco, ou o mesmo foco que
teríamos, só que a bagagem que o constitui não é somente o que somos, mas o que
fomos como história e raça? Ai está a chave para considerar a importância do
inconsciente coletivo e dos arquétipos, e a partir desse momento eles devem ser
entendidos como inevitáveis constituintes do que somos.
Percepção, julgamento, pensamentos, memória,
sentimentos, intuição, juízo, todos são conceitos constitutivos do que nos
define na nossa completude, todos estão subordinados às energias e cargas que
carregamos, porque acima de tudo somos resultado de diferentes esforços, só que
agora sabemos que não são todos nossos. O ser do resultado, sempre à procura,
invariavelmente vai se deparar com o fato de que nele residem seus ancestrais
com as cargas de seus erros e acertos. Carl Gutav Jung foi quem nomeou essas
pressões ancestrais em seu todo, chamando-as inconsciente coletivo, e as suas
partes constitutivas chamou arquétipos. Possibilitou-nos compreender de forma
mais global o que somos, mesmo que essa compreensão também se baseie no item
estudado através do próprio item estudado que julga, mesmo contaminando
sistematicamente o julgamento que um dia foi considerado livre e parcial em sua
base e em seus resultados. A liberdade reside em ser em parte algo que não
considerávamos ser? A liberdade reside em vivermos com base nos vícios e
virtudes dos nossos ancestrais? A liberdade reside no fato de não conhecermos?
Ou no fato de podermos procurar?
Como dito anteriormente, somos resultado, mas somos busca também e devemos viver conscientes de que enquanto buscamos, muito do que achamos desejar vem de outro tempo, de outros indivíduos; desejos que não podem ser considerados alheios, porque não nos alienaremos do que nos constitui, já que somos nós em primeiro lugar, mas também eles, os seres da nossa ancestralidade, em tudo que fazemos. Resta-nos a responsabilidade da carga e o privilégio de constituirmos parcialmente o que seremos como humanidade.
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